África!

Hadzabe, o povo que a humanidade ignorou !
Por: Jorge Ferrão

A pre-história começou pela recoleção e caça. A humanidade evoluiu. O progresso apagou as marcas do tempo. A inteligência humana reinventou o mundo. Mundo novo. Mas o progresso não matou os traços da ancestralidade. Bosquimanos, Sun do Kalahari e Pigmeus da África Central. Com maior ou menor propensão mantem seus hábitos. Fazem da natureza seu único e ideal habitat. Nomadismo. Caça e recoleção. Muito poucas pessoas terão ouvido falar do grupo étnico Hadzabe. Eventualmente, a tribo mais primitiva do planeta. Mais desconhecida. Em 1978 eram um pouco menos de 1000. Vivem como a humanidade o fez a millhões de anos. Pre-história. Desconhecidos pelo mundo e até pouco conhecidos no seu pais. Como foi que o mundo os renegou?

Os Hadzabe são um dos vários grupos étnico da Tanzania. País irmão. Berço da lutas de libertação no sul do continente africano. Os Hadzabe vivem no nordeste da Tanzania. Província de Manyara. A região é famosa pela abundante fauna selvagem. Pelos parques nacionais. Taranguire, Manyara e a zona de conservação de Ngorongoro (cratera) e ainda as planíces do Serengueti. Mas é próximo do lago Eyasi que as últimas bolsas dos Hadzabe podem, ainda, ser encontradas. Bem próximo deste local, antropologos britânicos, nos anos 60, descobriram fósseis de hominídios que, de alguma maneira, comprovam as teorias sobre África como berço da humanidade.

Ouvi falar nos Hazabe, pela primeira vez, em 2004. Estudantes do Colégio de Mweka falaram neles com misto de angústia, frustração e honra. Falaram da ancestralidade e pre-histórica que os tipificava.Um povo que se recusara a civilização. tribo que poderia sucumbir.

Caçadores e recolectores natos, os Hadzabe sobrevivem de frutos silvestres, de mel e de carne de caça. Para eles o mundo foi criado pelo sol e pela lua. O sol que permite que eles localizem suas presas. Lua que os ajuda a sonhar e lhes dar sorte na caçada.

A caça é uma actividade essencialmente masculina. Caçam de tudo. Mamíferos de grande , médio e pequeno porte. Caçam, sem piedade, outros predadores. Não escapa. Tamanha ferosidade daria para entender, como o ser humano se transformou no maior e mais temível predador do planeta. A par da caça colectam mel. Os Hadzabe sobem árvores, para tirar mel ou caçar, com a mesma mestria e facilidade com que qualquer primata o faria. As Mulheres, para além de cuidarem dos filhos, são eximias a escavar raízes. Destas escavações retiram as calorias que os Homens não conseguem trazer. Qualquer roedor teria inveja de as ver escavar e retirar das entranhas da terra, as raízes do sustento. Todas as relações giram à volta da comida. Quando esta abunda, eles passam horas devorando, sem qualquer outra preocupação, tudo que a Mãe natureza generosamente oferece. Vida feita de comes e comes. Pessoas de invejavel e tremendo apetite.

Pessoas de estatura baixa, se compardos com a média, pele escurecida pelos banhos forçados de sol, corpos franzinos. Impossível descortinar, por entre poupada roupa, reservas caloricas ou banha. Nomadas, sobrevivem no meio da selva, sem casas, tendas ou abrigos. Apenas a sombra das árvores. Em épocas de chuva refugiam-se em cavernas. Sem pertences seus parcos haveres, viajam com eles o tempo inteiro. Restos de ferro, uma pedra para afiar lanças e muitos tendões de girafa para fazer os arcos. Flechas e arcos são o cartão de identidade.

Com a ajuda de estudantes e professores do Mweka College, Tanzania, travei contacto com os Hadzabe. Conversa longa e sofrida. Por vezes com tradução directa para Kiswaili. Outras só do Kidzabe, sua língua, para nenhuma outra. Falamos de como o falecido Presidente Nyerere teria ordenado a construção de casas para os Hadzabe. Vã tentativa de os persuadir a mudar de vida e hábitos. Mwalimo Nyerere, sem nunca os ter forçado, quis trazê-los, a qualquer preço, de volta ao mundo. Permaneceram nessas casas, tão somente, enquanto houve comida no seu interior. Assim, que esta terminou, eles seguiram seu caminho e nunca mais regressaram. Tanzânia falhara na missão. Com os Masai, tribo conhecidissima pelo semi-nomadismo, pastoricia e pela habilidade com a qual criam milhares de cabeças de gado, a história havia sido diferente.

Kidzabe é sua língua e diga-se dificílima de falar. Kidzabe feita a base de clicks e estalidos, mímica e assobios. Tudo associado a sua sobrevivência e economia. Caça. Assume-se que o ser humano tem a possibilidade de reproduzir aproximadamente 153 diferentes sons, em praticamente, todas as línguas conhecidas. Os Hadzabe, por si sós, possuem até cerca de 145 sons distintos. Kidzabe imita sons de animais, de pássaros. Tudo para confundir e não espantar a presa. A mímica é ordem de comando. Existem semelhanças entre as línguas dos Bosquimanos e dos Sun. Aliás, os testes de DNA comprovam similaridades genéticas. Não admira, pois, uma intrinseca relação entre estas tribos. Nem admira que a caça tenha determinado a linguagem humana.

Aos irmãos Djequera e Sariboco Dufu perguntei como lidavam com a morte. Onde enterravam seus cadáveres. Os Hadzabe não acreditam que exista algo para lá da morte. Vida termina. Os cadáveres são cobertos com folhas. Depois, é feita uma caçada. O animal morto é colocado junto ao cadáver. Não tardará que as Hienas se sintam atraídas pelo cheiro. Estes vorazes predadores se encarregam, então, de finalizar o animal e o cadáver humano. Morte gerando e mantendo a vida. Por esta razão, a hiena é o único animal que não é caçado pelos Hadzabe.

Conversamos sobre as técnicas de caça. Dos venenos colocados nas extremidades de suas lanças. Veneno extraído de plantas. Basta, então, explicavam que a lança atinja a presa. Não importa a gravidade. O animal morrerá passados alguns minutos. O grupo de caçadores subsequentemente, segue os rastos. Contam com a orientação dos abutres. A carne envenenada não constituia perigo para seu próprio consumo. O fogo, feito a mão e na hora, reduzir a vitalidade do veneno. Satisfaz o apetite do caçador.

Os Hadzabe são exímios conhecedores de plantas. As plantas são farmácias a céu aberto.Curam todas e mais algum sintoma. Na verdade, não consomem vegetais. Djequera Dufu, ele próprio, foi atacado de surpresa por um bufalo. Fractura exposta na perna direita. Garante que as plantas o curaram. Mesmo a malária, que dizima milhões em sociedades civilizadas, parece não fazer vítimas, entre os Hadzabe.

Amantes incondicionais da liberdade, os Hadzabe partilham tudo dentro do seu grupo. Viajam em grupos de quatro a cinco famílias.Nem parece. Para alem de parentes consanguineos, os grupos hospedam jovens caçadores de outras família. Acreditam em amuletos. Absolutamente todos usam colares e são vacinados para se prevenirem das modeduras de cobras e outros animais. Não existem, porém, doutrinas ou religiões no seu seio. Sol e lua. Vento. Quando venta não se caçar. Os cheiros e odores são perceptíveis pela presa. Nem mesmo as relações matrimoniais são efêmeras. Os Hadzabe respeitam suas famílias, mas não se prendem a mesma mulher, quando achavam que atingiram níveis de saturação. Quando a primeira Mulher envelhece é sibstituída por uma mais nova. Duas mulheres em simultaneo é raro, difícil de gerir. Mas, aconteçe.

O contacto ocasional com outros grupos étnicos colocaram-nos próximos do alcool e tabaco comercial. Alcool e cigarro converteram-se em presentes de luxo. Assim são feitas as aproximações. Novas amizades. Hadzabe, como família, alucinados tentam compreender o dito mundo. Consomem o quanto seus corpos toleram.

Porque razão os Hadzabe terão sido, aparentemente, esquecidos pela humanidade?Porque seu desenvolvimento não acompanhou civilização e outras etnias? Não devem existir resposta. Não foi vontade divina.

Assume-se que pelo facto de viverem em zonas infestadas pela mosca tsé-tsé, próximo dos parques nacionais, o estabelecimento de comunidades sedentárias, pastores ou agricultores foi evitada. A abundância de carne de caça, nesses parques bem preservados, manteve níveis de dieta e conforto razoáveis. O sentido de liberdade e independência de sistemas, também pode ser equacionado. A política de tolerância ilimitada dos tanzanianos, nas relações inter-tribais, também, facilitaram a permanência na selva.

O ideal de qualquer Hadzabe é caça. Virar caçador. Aprender todas as técnicas de seus progenitores. Isso só se aprende na selva. Presidente Kikwete, a semelhança de Nyerere, quer alterar a situação. Sabe-se, de antemão, que o recurso a força não surtirá efeitos. Terão que ser usados incentivos diferentes. Algumas crianças Hadzabe estão sendo levados para escola. Pode ser um primeiro passo.

Afinal esta mudança terá de ocorrer. Os cenários mudaram. Com aumento da população, aumenta pressão sobre espaço vital dos Hadzabe. Interagem, mesmo sem querer, mais frequentemente, com outras tribos. Mas, o mundo precisa de fazer muito mais pelos Hadzabe. Seus números reduzem a olhos vistos. Podem, mesmo, estar em vias de extinção. Os paradoxos do mundo e da civilização encontram nos Hadzabe campo fértil para os questionamentos. Como pode a humanidade ir para Marte e para Lua, fazer cirugias laser, viver na luxúria e esquecer-se, bem do seu lado, que outro ser humano, é pre-histórico? (X)