Sobre o Norte

As Baleias de Vamizi
Por: Isabel Marques da Silva

Os meses de Julho a Novembro são, agora, os meus meses favoritos. Bebo café na esplanada, e sou muitas vezes surpreendida por 40 magníficas toneladas, distribuidas por 16m de pura elegância, que me convidam para um mergulho. Baleias de bossa! Um festival de fazer inveja a Cannes, Los Ageles, Milan, Burkina Faso. Junto, então, o útil ao agradável. Deixo que minhas energias sejam absorvidas pelo fascinante espectáculo. Iniciou minha manhã de trabalho, sem que eu mesma tenha dado conta.

Nutro pelas baleias a mais profunda paixão! Iniciei meu trabalho no projecto de conservação marinha da Ilha de Vamizi. Maluane. Missão: produzir um catálogo de foto-identificação das baleias de bossa. Junto, monitorava tartarugas marinhas, corais e diversos peixes. Confesso, foi a primeira vez, como profissional, que me aventurei a catalogar baleias de bossa. Vamizi, pelo que já conhecia, era o paraíso das baleias.

Durante semanas, já em Julho, naveguei sem descanso nos barcos de pesca desportiva do lodge. Nem uma única baleia! Começava a duvidar de sua existência… As baleias de bossa (Megaptera novaeangliae) apertam-se na costa moçambicana, entre Julho e Novembro. O Arquipélago das Querimbas, Inhambane, Bazaruto e outras ilhas, são os seus locais predilectos. Também designadas Baleia Jubarte, no Brasil, Baleine à Bosse, em Francês, e Ballena Jorobada, em italiano, elas medem entre 14 e 18 metros e pesam entre 33 e 45 toneladas. Assim, são reconhecidas entre as maiores baleias dos oceanos, pelos saltos espectaculares e pelos batimentos das barbatanas caudais e peitorais.

As baleias, assim como os golfinhos, são cetáceos. Do Latim, Cetus (grande animal marinho) e do grego, Ketus (monstro marinho). Porém, estes animais nada possuem que os caracterize como monstros, exceptuando o seu tamanho descomonual. Mamíferos como nós humanos, possuem uma longevidade até 77 anos, necessitam de vir à superfície para respirar, e têm ainda uma estrutura social complexa, com “linguagens” próprias, ainda não totalmente compreendidas pelos cientistas.

As baleias de bossa que visitam as costas moçambicanas alimentam-se de Krill (um pequeno camarão), nas águas frias da Antárctida. Migram, depois, milhares de quilómetros, para as regiões de reprodução. Normalmente, elas escolhem as águas quentes. No período da migração não se alimentam. Eventualmente, a sua opção pelas águas quentes para reprodução, têm a ver com a abundância de predadores. As Orcas. Outro factor associado é o facto de as crias nascerem com muito pouca gordura e, consequentemente, muito dificilmente conseguiriam regular a sua temperatura nas águas frias da Antárctida.

Provavelmente, será possível observar estas e outras baleias em qualquer ponto da costa moçambicana. Um passeio ao longo da costa , uma curta travessia de barco, uma saida de pesca desportiva, oferecem excelentes oportunidades de observação. Porém, torna-se importante notar que as Baleias de Bossa preferem águas profundas durante as migrações. Os locais da costa moçambicana onde mais depressa se atingem profundidades (mais de mil metros), são os locais com as maiores possibilidades de observação. Note-se, no entanto, que as baleias com crias, principalmente com crias de alguns dias ou semanas, podem ser observadas em baías pouco profundas, especialmente, no norte de Mozambique, no Arquipélago das Querimbas. Vamizi é um local ideal.

Nos primeiros dias de nascimento as mães procuram protecção para as suas crias. Assim, elas aguardam até que as crias aprendam a achar os orifícios mamários e a retirar o leite sem desperdícios. Naturalmente, as águas calmas do interior das baías, são um excelente local de aprendizagem para as “pequenas” baleias (3-5m).

Muito pouco se sabe dos comportamentos destes mamíferos marinhos. A dificuldade de os estudar aumenta porque passam a vida debaixo da água e frequentemente distantes da terra. Os recentes progressos tecnológicos e o aumento do esforço no seu estudo permitem, paulatinamente, que os seus segredos sejam desvendados. A baleia de bossa, sobretudo ela, é uma das mais energéticas e acrobáticas à superfície, proporcionando excelentes oportunidade de observação e estudo. Através do salto, o batimento da cabeça, o batimento caudal e peduncular, e ainda, o batimento peitoral, conhece-se um pouco melhor o seu comportamento. Mas, igualmente impressionantes são o sopro, o espiar da cabeça ou, simplesmente, o repousar na superfície, permitindo ver praticamente todo o animal.

O salto pode variar de uma emersão completa para fora da água, a uma aparição vagarosa, em que, pelo menos, metade do corpo emerge. Apesar das numerosas explicações, o salto continua um mistério. Seria uma pura manifestação de cortejamento? uma forma de comunicação por sinais? Ou o desalojar de parasitas? Porque não equacionar uma manifestação de força ou um desafio, ou quem sabe, simplesmente uma brincadeira?

Para estudar estes mamíferos marinhos, é preciso identificar cada indivíduo para segui-lo durante vários dias, ou entre vários anos, ou mesmo entre várias estações de observação. As diferentes colorações das suas caudas constituem um instrumento único de identificação: não existem duas baleias de bossa com a mesma coloração, funciona como a impressão digital dos humanos. Estes estudos são chamados de foto-identificação e consistem na elaboração de um catálogo de baleias para a zona do estudo. Conforme a quantidade de fotografias tiradas e o esforço realizado, diversos estudos podem ser feitos com estes catálogos.

Passados vários anos, múltiplas viagens de barco, mais de 30 baleias identificadas, as baleias de bossa continuam a surpreender-me e a encantar com os seus saltos acrobáticos, os seus comportamentos maternais ou o simples respirar. A respiração das grandes baleias, o sopro, constitui uma das melhores maneiras para as localizar numa vasta extensão de mar. O número e a frequência dos sopros à superfície é indicativo das actividades das baleias nesse momento, e um bom indicador do que se passa debaixo de água: mais sopros, mais actividade.

Os batimentos de cabeça, peitorais e da cauda, não são tão espectaculares, mas são magníficos de se ver, especialmente de perto. Consistem no batimento na superfície da água por estes diferentes membros. As barbatanas peitorais das baleias de bossa medem 2/3 do seu corpo (mais ou menos 5m) e são, por isso, enormes! O simples ondular destas à superfície é algo imperdível! Existem várias hipóteses para explicar estes comportamentos, mas nenhuma ainda aceite por todos.

O batimento peduncular consiste em lançar a parte posterior do corpo para fora da água e bater com ela, de lado, na superfície ou numa outra baleia. É aceite pela maior parte dos cientistas como um comportamento agressivo e qualquer observador perto da baleia deve afastar-se. Se encontrar alguma no seu caminho, lembre-se disso!

A cabeça levantada lentamente na superfície demonstra um comportamento de curiosidade em relação ao objecto observado (normalmente algum barco) e é chamado, comportamento de espia.

Os machos das baleias de bossa são bem conhecidos pelas suas serenatas: as mais longas e complexas canções do reino animal. Eles cantam somente durante a época de reprodução e durante a migração para as zonas de reprodução. Uma canção pode durar entre 6 a 35 minutos, mas pode ser repetida durante horas. Cada macho tem uma canção ligeiramente diferente, que evolui ao longo da época. Existem diversas explicações para a existência destas canções: são um sonar para encontrar fêmeas, são um sinal da força do macho, são dedicadas às fêmeas, são uma “batalha com outros machos”, são a demarcação de “territórios” (áreas de controle). Estas canções podem ser ouvidas pelos mergulhadores desportivos, mas isto não quer dizer que estejam muito perto. O som viaja mais rápido debaixo de água e, assim, podemos estar a ouvir baleias a diversos quilómetros de nós.

A principal ameaça das baleias de bossa foi e será o homem. Mais de 100.000 baleias de bossa foram mortas pelos baleeiros e apesar de algumas populações estarem a recuperar, os números actuais constituem uma pequena fracção dos originais.



NKUNGO NO LAGO SEM NOME

Por : Jorge Ferrão

A terceira foi de vez. Não há duas sem três. Fui ao lago, sem nome, procurando Nkungo. Opção, no mínimo, invulgar. Poderia ter ido para desvendar os segredos de Meponda. Desfrutar das praias cristalinas de Kóbwè, Ngo, Chuanga. Relaxado no cruzeiro trans-africano Ilala. Poderia, enfim, deixar que o feitiço das águas me devolvessem para os céus. Comtemplar o interminável desfile de raridades. Mas foi o Nkungo que remexeu com meus interiores. Minhas curiosidades. Esse insecto, rico em proteína, ferro e cálcio, que ao longo de décadas serve de “Délicatesse” as restritas mesas dos ribeirinhos. Nkungo, pela raridade, preenche algumas poucas horas em canais como Discover e National Geographic.

Nkungo é um insecto de tamanho ligeiramente superior ao mosquito. Família dos Diptros. A sua designação mais comum em inglês é Lake Fly. Nkungo é mais escuro e bem mais útil que o mosquito. Todos os ribeirinhos o conhecem e desfrutaram de seus sabores. Aliás, conta a tradição, que o Nkungo fecunda e se reproduz no interior de um peixe gigante do lago. Este peixe, escuro e desconhecido, apenas vem a superfície, de vez em quando, para respirar e libertar suas crias. Nesse momento ele expele o Nkungo. O peixe é o dono do lago e de todas as vidas do lago.

Nkungo é uma designação de origem Nyanja. Nem por menos, foi nas proximidades do lago, que a etnia desbravou seu espaço e sua civilização. Na realidade, os ensaios científicos dão conta que o Nkungo, se origina de uma larva que é depositada na superfície do lago. Na época da reprodução geram-se milhões de novos insectos. Ainda em estado vulnerável, estes são arrastados pelos ventos. O destino de uma grande parte é a costa. Neste percurso entre o local de nascença e a costa, forma-se uma nuvem escura que sobrevoa, baixo, por cima do lago.

Do lado da costa, nos dois países, as mulheres, sobretudo elas, pegam em peneiras (cestos de palha circulares e abertos) molham-nos e apenas tem a tarefa de deixar que o Nkungo se encoste. Uma caçada fácil e ambientalmente correcta. É o final prematuro de uma vida que dura algumas horas e um único vento. Uma vez retirados das peneiras, o Nkungo é amalgamado, seco e depois confeccionado com um dos ingredientes de um saboroso prato local. As formas de preparo variam. Pode ser consumido ensopado ou até como uma espécie de mukate/mikate (pão tradicional). Sabor diferente do comum, mas nem por isso menos saboroso. Mais rico e nutritivo, pelo menos. O certo é que o Nkungo pode ser conservado por muito tempo.

O Lago Nyasa, ex libis nacional.

Sobre o Lago Niassa dispensam-se introduções ou alongadas referências. Falso. Desconhecemo-lo. Na realidade, ninguém o conhece. Apenas ouvimos falar. Nem é por acaso que Valdez Santos o designou por “O desconhecido Niassa”. O mais distraído cidadão imagina um lago, cuja vista desarmada, alcance suas extremidades com facilidade. Aquele lago que mais não é que a repetição da vulgaridade.

Mas o lago Niassa não é apenas um lago. É a água que gerou vida. Vida que deu origem a água. E se água é vida, então, Niassa é vida. Niassa é o mundo. Um mundo com sua vida e muitas vidas. Niassa é aquele mar que se escondeu no interior e nas costas de outros oceanos. Só um pouco mais que uma caixa de surpresas. Terceiro maior lago do continente africano, e o lago que maiores reservas de fauna possui. Foram identificadas cerca de 1300 espécies de peixe. Destas, pelo menos, 98 são endémicas. Pelo menos, 30 espécies de peixe estão em risco de extinção. Os peixes mais conhecidos e famosos são os da família Chichlids (Giraffe Cichlid), nome cientifico, Nimbochromis venustus.

Ao longo de séculos, Niassa tem sido o principal viveiro exploratório para os pesquisadores, turistas, curiosos. Das suas margens ou interiores, milhares de teses e estudos revelaram deslumbrantes descobertas. O que ainda não sabemos bem é que o lago servirá de refúgio para todos nós, quando o fenómeno aquecimento global atingir o rubro. Será para lá que emigraremos procurando as esperanças. Vivendo como ribeirinhos ou em casas lacustres, encontraremos no Niassa a última fonte de água potável, do planeta, para as últimas gerações humanas.

Lago Niassa deve o seu nome à palavra de língua Ciyao, Nyasa, que mais não significa do que uma grande extensão de água. Assim, Nyasa seria um rio, um lago ou até o mar. Depois que entendi o significa da expressão Nyasa, achei estranho que, nossos ancestrais, nunca tivessem dado nenhum outro nome ao lago. Porque razão o lago seria inominável? Vendo bem, quando o tamanho da vida é como o própria vida, o único nome que faria sentido, seria vida. Então, teríamos Lago Vida. Ou porque será que ninguém se lembrou de o designar por Cindimba, dança que homenageia os defuntos? Porque não Lago Likunda, o mais livre dos tambores das etnias vizinhas? Porque não lago Nkungo? Esse insecto que ajuda a manter e gerar vida aos ribeirinhos?

O Nyasa localiza-se a mais ou menos 600 km do Oceano Indico. Cota acima de 480 metros acima do nível do mar. Com uma superfície de 30.000km2, sua extensão é de, aproximadamente, 565km, no sentido norte sul. Considerado lago Oligotrófico (profundo, águas doces e sem placton), ele situa-se na falha geológica conhecida por grande Vale do Rift. Em determinados locais do lago ele atinge 1.500 metros de profundidade. Junto a costa, o lago tem, em certos locais, profundidades de até 200 metros, com temperatura da água que se mantêm estável em 22º centigrados. Verdadeiro paraíso para os mergulhadores.

Uma visita pelo lago e por Niassa é obrigatório.

Uma visita pelo lago é algo que todos os moçambicanos deveriam fazer. Nem importa a idade e muito menos a época do ano. No Nyasa qualquer altura do ano é boa para uma volta. Por ar a opção será escalar Lichinga e depois seguir de carro para Metangula ou Meponda. A viagem de carro para Metangula é das mais agradáveis que pode ser feita no interior da província. A estrada é asfaltada e a paisagem fascinante. São dignas de registo a cadeia Maniamba-Amaramba, interrompidas pelas manchas de Karroo. A vegetação, por si só, é um outro e memorável espectáculo.

Em Meponda, Ngo, Chuanga ou Kóbwè, do lado de Moçambique é fácil embarcar no cruzeiro Ilala. A acostagem é feita uma vez por semana e, devido as proporções do navio, o transbordo é feito em pequenas embarcações. Depois da paragem em Moçambique, o cruzeiro segue para outros destinos no Malawi. É sempre uma oportunidade para conhecer e visitar a Ilha de Likoma. Likoma vale pela infra-estrutura que foi criada e pela beleza natural da qual se reveste.

O roteiro do Ilala termina no “Monkey Bay” já do lado do Malawi, sem que antes passe, igualmente, por Sanga Bay. Esta viagem pode durar de cinco a sete dias. O único cuidado a ter é com as ondas, em dias de fortes ventos. Ai o mar se transforma num monstro. Um Adamastor dos tempos dos novos tempos.

Existem várias referências escritas sobre o Nyasa. Algumas datam de 1619 e são devidas a Gaspar Bocarro que, na sua viagem de Tete a Quiloa, esteve nas margens do lago. Todavia os escritos dos exploradores ingleses ou financiados pela inglatera ganham maior expressão ao longo dos séculos. Checil Rodhes, Henry Stanley, apenas para citar alguns, são referenências incontornáveis no estudo sobre o lago.

A literatura defende que Livingtsone, célebre escocês, descobrira o lago em 1859. Outras referências, mais próximas, revelam também que Baltazar Rebelo de Aragão, português, já nos idos 1560, avistara o lago, por incumbência do Governador português de Angola, D. Manuel Pereira Forjaz, que tentara a travessia oeste – este do continente africano.

O jornalista britânico Basil Davidson, autor de memoráveis reportagens sobre África, visitou Niassa, no longínquo 1968. Não falou apenas do lago. Falou de Matchedje. Usando caneta como arma, foi um dos convidados ao II Congresso. Passam-se 40 anos. Matchedje revive. Placas, pontes, fotos, as mesmas copas de árvore. Anos de história e glória que perdurarão para sempre na memória dos viventes e descendentes.(X)

Este pequeno país que decidiu baptizar o lago, com o seu nome. Lago Malawi. Terá sido a forma suis generis que o país encontrou para o marketing internacional.

Mas, quem quer visitar o lago pode servir-se do cruzeiro idala. Do lado de Moçambique, esse cruzeiro acosta três vezes por semana. No longo percurso ele passa por várias localidades moçambicanas e por muitas ilhas. Ntikitche Lodge, que esta revista ja uma vez fez referência, é outro dos locais onde se pode apanhar a embarcação. No final do passeio deverá atracar na vila de ... no Malawi.(X)


Um pedaço de Navio Angoche
Por : Jorge Ferrão



Angoche voltou a ribalta depois do ciclone. Ciclones e depressões ainda tem o poder de restituir a cidade a ribalta internacional. Mantida por um marasmo económico, Angoche, hospeda recursos costeiros dos mais impressionantes do país. Tanta riqueza e beleza de mãos dadas, que Angoche poderia, sem erro, competir com Cabo Delgado, como destino turístico de cinco estrelas. Turismo de alto nível.

Praias, dunas, ilhas povoadas e despovoadas e muita beleza dos seus habitantes. Quem nunca visitou terá de o fazer hoje, amanhã, poderá ser tarde.

Angoche relembra a história do navio cargueiro que pertenceu a companhia nacional de navegação. Passam-se 37 anos desde que o navio “Angoche” atracou no porto de Nacala. Vivia-se a parte final da guerra de libertação nacional. Nos seus porões estava armazenado material militar como explosivos e bombas para a força aérea. Tudo o que a tropa militar portuguesa precisava para, no último desespero, estancar o avanço da libertação.

A 26 de Abril de 1971, segundo documentos secretos da PIDE e DGS, polícia secreta portuguesa, o navio Angoche zarpou com destino à Porto Amélia, hoje Pemba. O percurso demoraria um pouco mais de 12 horas. A bordo seguiam 22 ou 23 tripulantes, dos quais 13 moçambicanos, originais.

Angoche nunca chegou ao seu destino. Sequer foi para a cidade que ostenta o seu nome e que fica bem no sul desta província. Alguns dados disponíveis, que aliás são escassos, revelam que o navio foi encontrado à 24 de Abril. Outros falam de 06 de Maio, do memso ano. O Angoche foi, finalmente, achado com fogo a bordo a 30 milhas da costa de Sofala. Na verdade entre Quelimane e Sofala.

Teria sido o navio “Esso Port Dickson” petroleiro com pavilhão americano, que teria feito a descoberta e comunicado, via rádio, as autoridades portuguesas. Pelos dados, teriam existido duas explosões, uma junto à chaminé de estibordo, por cima da ponte de comando, outra dentro do ventilador das máquinas. Pela dimensão da explosão, situada nas instalações da tripulação branca, não haveria nenhuma possibilidade desta ter sobrevivido. Porém, na próa, onde se encontrava a tripulação negra, aqui sim, ainda poderiam ter sobrevivido alguns tripulantes, a avaliar pelas vestes encontradas, restos de sapatos, tabaco, etc.

As fontes, fazem crer, que o Angoche teria sido abordado por um submarino da União soviética, que, eventualmente, teriam levado seus tripulantes para a Tanzânia, para a base central de Nachingwea, deste modo juntando-se a Frente de Libertação de Moçambique.
As suspeitas recaíam, igualmente, sobre uma possível sabotagem da Acção Revolucionária Armada (ARA), um braço do Partido Comunista português. Aliás, os indícios são muito fortes de ter sido este grupo quem tenham desferido o golpe.

Num caso ou no outro, nunca a inteligência portuguesa soube esclarecer e desvendar este mistério. Sabe-se, apenas, que foram encontradas manchas de sangue, em vários pontos do navio, para além dos vestígios que atrás se faz referência.

Na realidade, quando a secreta portuguesa (PIDE-DGS) fez o primeiro exame ao navio, constatou que existiram explosões provocadas por cargas colocadas. Possivelmente, as cargas teriam sido reforçadas por granadas de fosfato. Dos coletes existentes, pelo menos, 3 havia sobrado no navio. Os restantes desaparecido. Será que a tripulação foi raptada ou terá mesmo perecido no interior do Angoche? Nenhum relato consultado faz menção ao facto de terem sido descobertos cadáveres no seiu interior.

Naturalmente, seguiu-se uma intensa vasculha entre as inteligências portuguesa, sul-africana e até a rodesiana. Até os serviços secretos portugueses, na Tanzânia, foram accionados. Existiram rumores que, em Dar-es-Salaam, capital da Tânzania, pelo menos 11 tripulantes haviam sido vistos vivos. Um espião português, em Mtwara, até procurara por informações no porto de Mtwara, sem que essa consulta tenha produzido resultados evidentes. Em outros desdobramentos, até se aventou a possibilidade de a tripulação ter sido vista em Lusaka, na Zâmbia, detida. Aliás, esta tripulação estaria refém de um julgamento de um capitão cubano, Pedro Rodirguez Peralta, que fora capturado na Guiné, em Novembro de 1969, ao lado dos guerrilheiros do PAIGC.

Dos indícios do envolvimento da própria tropa portuguesa, soube-se, mais tarde, que a carga explosiva havia sido colocada antes da saída do navio do porto de Nacala. Possivelmente, desertores do exército, numa altura que, também em Portugal, o exército evidenciava alguma fadiga com a guerra nas colónias. Na verdade, a revolta na base aérea de Tancos, demonstrando essa saturação e, os únicos responsáveis, poderiam, apenas, ser os próprios soldados portugueses.

Foi trocada muita documentação entre a secreta portuguesa. As fontes citavam jornais de vários países. Tudo serviria para camuflar e ilibar a contra-revolução que se instalara. Diversos soldados portugueses foram mantidos sob suspeita. Na Beira, suspeitava-se que um oficial da marinha de guerra estivesse, igualmente, envolvido. A morte prematura, em circunstâncias nunca esclarecidas, da esposa deste oficial, reforçam a convicção do seu envolvimento.

Depois do 25 de Abril muitos dos documentos que poderiam ajudar a explicar este e outros casos, porém estes desapareceram. Pode acreditar-se que a PIDE DGS os tenha queimado, ou que eles tenham, até sido, roubados na euforia da revolução dos cravos de Abril. Um jornal português, porém, depois de Abril, segundo um texto na Internet, do site alta vista, refere que a fotografia de um dos tripulantes do Angoche, apareceu num periódico da China, aparentemente fotografado em Nachingwea, na Tanzânia, numa das bases da Frente de Libertação de Moçambique.

Abril serviu para reviver este episódio. Quando um dia a história de Angoche for reconstituída, um dia, quem sabe, algum sobrevivente deste milagroso navio cargueiro, contará este episódio, na primeira pessoa e com os detalhes que, nenhuma polícia secreta conseguiu desvendar. Angoche continuará bela e misteriosa. (X)

 
(In)confidências milenares no Lumbo
Por: Jorge Ferrão

Lumbo transformar-se-á em cidade no ano que agora se inicia. A convicção é generalizada em certos habitantes. Pelo menos, para aqueles que foram ao lançamento da Vila do Milénio. Como cidade, Lumbo, voltará a competir com a Ilha de Moçambique. As velas dos cortejos turísticos flutuarão de volta ao continente. Lumbo retomará as luas de glória, local de referência obrigatória, segunda capital, como foi autrora. Lumbo, sem salinas, teria de volta a sua pista para aviões de última geração, mais barulhentos que os dakotas. Com a generosidade dos que engendraram as vilas do milénio, Lumbo hospedará grandes hotéis, largas estradas. As almas perdidas pela vila abraçariam seus proprietários. Lumbo regressaria ao futuro.

Tudo começou no dia em que termina e começa a semana -Domingo. A comitiva da nação, moda antiga que volta à ribalta, anunciou a criação de uma vila do milénio no Lumbo. O intérprete, hábil e diplomado pelos discursos simplistas, engasgou-se quando tentou pronunciar a palavra vila. Engavetou suas mãos pelos bolsos e, no esfarrapado dicionário mental, o único sinónimo rebuscado foi cidade. Hesitante, pediu socorro à divindade e arriscou.Vila até rimava com cidade.
Mal se refazia do primeiro truque profissional e lexical quando entornou-se pelos tímpanos o “milêénio”. Tudo se complicou ainda mais. Ocorreu-lhe, inicialmente, banco. Certamente, julgou-se, aquilo não faria sentido. Porém, vendo bem, cidade e banco têm tudo a ver. Tudo em comum. Ficou-se, mesmo, por cidade do Lumbo no próximo ano.Pior a emenda que o soneto. Com cidade, o mais normal, teria sido que esta fosse edificada em 2008. De outro modo, porquê tanta visita ao Domingo?

Vila, concelho, circunscrição, localidade, distrito, etc. são conceitos administrativos. Vigoram de acordo com as legislações adoptadas pelos Estados. Etses conceitos, sofrem variações.As línguas bantu, ainda ressentidas pelas restrições a que foram sujeitas, não se preocuparam em seguir a evolução destas expressões. No imaginário do nobre tradutor existiam apenas duas definições. Aldeia ou cidade. Nada de meio termo, nem intermediários. De resto, ninguém poderia deslocar-se de tão longe, reunir tantas viaturas protocolares se não fosse para proceder ao lançamento de algo muito importante. Lumbo seria, então, uma cidade, porque já foi vila, no passado, e não precisaria de certificado da nação para continuar com seu estatuto. Está degradada, é verdade, mas é vila. Uma nova roupagem resultaria em cidade.

Os presentes, também divididos entre, Mulheres à esquerda e Homens à direita, refrescados pela brisa da maré, que passeava suas bençãos, banharam-se de espumas de alegria. Um renovar de esperanças pelas cabeças que nem mais sabem a quem escutar. Aplaudiram a tradução e o não menos merecido presente. Parecia generosidade demasiada, mas a divindade tem sido benevolente para quem tem fé. Este seria o prémio para todos quanto haviam gazetado a retórica dominical de purificação da alma.

A expressão milénio continuava a ser (des)intrepetada, mas ficava sempre o sentido de algo associado ao banco.Banco é coisa de cidade. Logo, para o ancião pescador, com quem conversava, estava claro. Lumbo seria cidade em 2008, até com banco. Vários bancos.
- Veja meu amigo - dizia ele - quando a reunião terminou até ofertas recebemos. Presentes da nação. Objectos que vieram de muito longe. A reconfirmação das certezas de um presente promissor. –Recebemos insumos. Para a distribuição quase foi desnecessário tradutor. Na verdade, ele estava mais preocupado com a parte que lhe caberia. No meio de palmas o tradutor apenas apontara para os disformes sacos e caixas de cartão. Num ápice distribuiram-se os insumos. Sementes ,enxadas e redes mosquiteiras.

Mais incertos que seguros, os presentes receberam os insumos e voltaram para seus lugares. Afinal,oferta não se nega, mesmo quando o seu sabor é desconfiado. Com os presentes na mão,pela cabeça de todos e, cada um, fervilhavam os questionamentos. Seriam aqueles os instrumentos, as essências, para iniciar a edificação da futura cidade do milénio do Lumbo?Afinal,enxadas,todos sempre tiveram. Várias enxadas de cabos curtos e compridos. Sementes, idem em aspas. Mas, então, por que carga de água Lumbo não se transformara em cidade antes?Porque foi que Lumbo hibernara, ao longo dos anos, com tanta enxada e semente? Tudo o que era necessário estava ali, bem às mãos e pés de todos.

Viajei para Lumbo procurando o túmulo do poeta Tomáz António Gonzaga. Brasileiro e português. Descendente da colónia. Gonzaga aliara-se a Tiradentes, no milênio dos 1700, na celébre e trágica “inconfidência Mineira”. Gonzaga, autor do poema “Natália e Dirceu” acreditava, como Tiradentes, numa sociedade de justiças, livre de esclavagismos, com liberdades pelo ar. A dupla inconformava-se com os excessos da monarquia. Esta, sem meias nem completas medidas, silenciaram-nos. Gonzaga foi deportado para as Áfricas. Ilha de Moçambique. Tiradentes teve sorte diferente. Acabou esquartejado. A Monarquia colocava, assim, uma pedra no sapato, evitando novas sublevações e atitudes revolucionárias.

O túmulo de Gonzaga permanece algures pelas terras do Lumbo. Muito embora, a história, sempre ela, defenda que os Salazaristas tivessem enviado as ossadas de volta às origens, para o Brasil. Minas Gerais. O pedido de repatriação fora formulado por Getúlio Vargas. Também ele, vítima do seu próprio destino. Os fazedores da história desconfirmam. Asseguram, pés juntos, que as ossadas eram de um dos filhos de Gonzaga. Oxalá ,um dia, os DNA’s ajudem a esclarecer os detalhes.

Nesta trajectória de redescobrimentos eu enxergava a possibilidade de abertura de uma frente de turismo exploratório. Turismo milenar. Condicente com os objectivos do milénio. Aumentar as receitas turísticas locais, através de um roteiro específico para pesquisadores brasileiros feitos turistas. O Brasil, de outros milénios, se resdescobriria em terras moçambicanas e versa-vice. Quem sabe, o reencontro dos vários Gonzagas, do Atlântico e Índico, com e sem sotaque.

Não vi o túmulo. Não li, ainda, o poema.Como barco de múltiplas velas remei para a história da cidade do milénio. Quem não se interessaria por uma nova cidade em Moçambique, construída num ano? Uma nova Roma e Pavia construídas no mesmo dia?

Nem foi, apenas, a boa nova da cidade do milénio que fez minha cabeça naquela manhã de domingo. Soube, também, pelas mesmas vias, que a malária, que vitima, infelizmente,milhões em Moçambique e no mundo, deixará de envergonhar a ciência e medicina moderna. Os locais do Lumbo começaram, em escalas reduzidas, a ser tratadas com recurso à artemisa. Aventa-se a possibilidade de usi da cacana. Kalumba. Artemisa tem sido usada com sucesso na Tanzânia, China, com os mesmos fins. Em Moçambique o seu uso ainda procura conquistar o seu espaço. Desconheço os resultados. Aguardarei pelas pesquisas. Os futuros profissionais de farmácia cuidarão do progresso e das boas novas.

Convenhamos, com a malária controlada, Lumbo poderia mesmo ser considerada a cidade dos milénios, o melhor lugar do continente para viver. Lumbo viraria um lugar de poetas, inspirados por Gonzaga. Lumbo faria da Ilha de Moçambique um museu, sem actividade económica.

Vou equacionando, enquanto minha conversa chega ao fim, no que certos segmentos da ciência e crítica designam por “ arrogância do dado adquirido”. Traduzido, aplicação de conceitos do ocidente e transportados à letra para o resto do globo. O fenómeno nem é novo. Também nada fazemos por alterá-lo. Desfilam por nós, passam-se décadas. Só para citar alguns: reajustamento estrutural, consenso de Washington, objectivos do milénio, Mecanismo de apoio à sociedade civil, Mecanismo de revisão de pares, vilas do milénio, etc. Assume-se, à priori, que todos entendem o significado. Todos. Até mesmo o mais pacífico pescador do Lumbo.

Oxalá que no ano ano que inicia, as instituições e os conceitos revistam-se de postura diferente. Continuemaos a inovar e a globalizar a vida de forma mais humana. Mais acessível. Domesticada. Os conceitos deverão ser traduzidos para realidades sócio-culturais. Os tantos milénios que agora proliferam, precisam de novas explicações. Lumbo não será, por enquanto, cidade. Só não saberei “desacretidar”, meu bom amigo pescador, sobre quanta ingenuidade passou pela sua cabeça.Ele próprio saberá que o tempo é uma excelente escola. 2008, por ser ano par, resfriará as expectativas. Os sonhos altos, devem continuar, sem que novas cidades sejam edificadas. Certamente, a malária deverá sofrer um revés... O desejo de todos nós para 2008 (X)